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Mariana Pezzo - Publicado em 08-07-2021 14:50
Pesquisa mostra como financeirização transforma a indústria automotiva
Livro está sendo lançado (Foto de fundo de Adonis Guerra em fotospublicas.com)
Livro está sendo lançado (Foto de fundo de Adonis Guerra em fotospublicas.com)
A decisão da Ford de encerrar suas operações no Brasil, anunciada em janeiro deste ano, surpreendeu o mercado, os trabalhadores da montadora e a sociedade brasileira. Pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção (PPGEP) da UFSCar ajuda a compreender o que aconteceu, ao caracterizar, na indústria automotiva, o processo chamado de financeirização, entendido como predominância do setor financeiro sobre o setor produtivo e a sociedade.

A pesquisa foi realizada no contexto dos núcleos de Estudos Organizacionais (NEO) e de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças (Nesefi), coordenados respectivamente por Mário Sacomano Neto e Júlio César Donadone, ambos docentes do Departamento de Engenharia de Produção (DEP) da UFSCar, no âmbito dos estudos de mestrado de Marcelo do Carmo. Os resultados foram publicados em artigo de 2019, assinado pelos três pesquisadores, e agora no livro "Financialisation in the Automotive Industry: Capital and Labour in Contemporary Society", de mesma autoria, com lançamento programado para 9 de julho pela Routledge e disponível para compra no site da editora.

O estudo, descritivo, mostrou as características que marcam o processo de financeirização nas cinco maiores montadoras do mundo: Toyota, Volkswagen, Hyundai, General Motors (GM) e Ford. A análise considerou um conjunto de cinco indicadores: comparação entre lucros obtidos de atividades financeiras e produtivas; composição acionária; aquisições de ações; origem dos dirigentes; e coleta dos resultados da produção (subdividido em compensações aos executivos; salários de funcionários; e pagamentos de dividendos a acionistas). Os dados foram compilados dos relatórios anuais das companhias, complementados por pesquisas na Internet (site da Nasdaq; páginas dedicadas ao mundo dos negócios, como Bloomberg e Forbes; dentre outras fontes).

Segundo os autores, o objetivo da análise foi interpretar processos a partir de números e outros dados que "permanecem silenciosos" nos relatórios anuais, pelas suas centenas de páginas e, também, pela linguagem contábil e as mensagens otimistas direcionadas a acionistas e investidores. "O diferencial do estudo é a apresentação de dados que descrevem uma realidade e, assim, tornam concreto um conceito abstrato da Economia, que é justamente o de financeirização. Nós olhamos para a financeirização de corporações, e pouca gente faz isso no mundo, o que explica o interesse na dissertação e sua publicação como livro", avalia Sacomano.

Embora haja diferenças entre montadoras e países, os resultados indicam que a financeirização está em curso em todos os casos, configurando transição do capitalismo produtivo para o financeiro e influenciando a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, ao impactar níveis de emprego, investimentos e salários, dentre outros aspectos.

A comparação entre lucros de atividades financeiras e produtivas visou justamente verificar o processo de ampliação da importância das primeiras - serviços de financiamento, leasing, empréstimos, cartões de crédito e seguros, dentre outros. Os resultados mostraram participação maior das atividades financeiras em todas as montadoras, embora os casos mais clássicos sejam os das empresas fundadas nos Estados Unidos - Ford e GM -, inclusive por serem as mais antigas. Nelas, a financeirização começou há pelo menos 25 anos e, no caso emblemático da Ford, foram os lucros do setor financeiro que a salvaram da falência quando, entre 2001 e 2008, sofreu perdas consecutivas na produção. Já a Hyundai é considerada a menos financeirizada, com equilíbrio entre as fontes de lucro, pagamentos de dividendos mais baixos a acionistas e controle acionário dentro do próprio grupo, um conglomerado familiar.

O olhar para pagamentos feitos a executivos, funcionários e acionistas permitiu analisar como a renda é distribuída e quais grupos recebem que partes. Dentre outras conclusões, a análise mostrou na prática como o princípio de atuação de todas as organizações é a maximização dos valores pagos aos acionistas. Este é um princípio que pode ser considerado um pilar do processo de financeirização, ao transformar uma estratégia baseada na retenção e reinvestimento de recursos na lógica de redução de custos fixos e distribuição de rendimentos aos acionistas, com pouca reserva para reinvestimento. 

Concretizando esse princípio, o estudo mostrou Ford, Toyota e Volks distribuindo de 97 a 100% do seu resultado líquido a acionistas, e GM 80%, na média dos anos estudados (2010-2015). A Hyundai novamente se destaca, mas, apesar de ter pago apenas 17% a acionistas em 2015, prometia aumentos substanciais nos anos seguintes.

Ainda em relação ao compromisso com a distribuição de rendimentos a acionistas, o estudo mostrou que, independentemente da origem dos executivos - no setor de manufatura ou no mundo das finanças -, as decisões foram as mesmas.

Os dados relacionados à composição acionária revelaram que grandes e poderosos investidores institucionais são os principais acionistas de todas as montadoras, apesar de diferenças nessa composição. No plano geral, a análise mostrou que mais ou menos 1% dos acionistas institucionais controlam cerca de metade das ações das companhias, revelando imensa concentração de recursos e poder decisório. Fundos de investimento dominam a Ford e a GM e bancos a Toyota, indicando o papel de instituições financeiras no controle das montadoras. Complementa esse quadro o fato de as aquisições acionárias seguirem um padrão (com exceção da Hyundai), com todas as maiores aquisições do último anos sendo feitas por organizações financeiras.

Na Hyundai, por ainda ser um conglomerado familiar, parcela significativa do controle acionário está no próprio grupo. Já a Volkswagen é um caso bastante particular, com uma indústria (Porsche) e um estado da federação alemã dominando as ações, o que, segundo os autores, pode explicar maior resistência à financeirização, apesar da clara adaptação gradual a uma nova era. Uma diferença que pode estar relacionada a essa configuração particular diz respeito ao emprego. Enquanto Ford e GM reduziram drasticamente sua força de trabalho no período e Toyota e Hyundai fizeram pequenas ampliações, a Volkswagen quase dobrou seu número de empregados nos 15 anos anteriores ao estudo, ainda que não na própria Alemanha, e sim sobretudo em empreendimentos na China.

Outro resultado importante é a distância entre executivos muito bem recompensados e uma força de trabalho com salários abaixo da média dos países de operação das montadoras, com os ganhos de CEOs representando centenas de vezes os valores pagos a funcionários em todas as empresas estudadas. Com exceção da Toyota (com pagamentos de três a quatro vezes menores em relação às demais), as outras companhias pagaram recompensas anuais na faixa entre 12 e 19 milhões de dólares a cada um de seus presidentes no período estudado.

"Ou seja, a ideia de que os interesses de todo o público interessado, de todos os stakeholders, são levados em consideração, existe apenas no plano discursivo. A realidade é que só o que importa são os acionistas", sintetiza Sacomano. "A Ford, portanto, sai do Brasil buscando justamente ampliar seu valor aos acionistas, sem negociar, mesmo tendo recebido muito dinheiro estatal para ficar e pagando muito menos para sair", exemplifica o pesquisador.

"É importante compartilhar que a construção dos indicadores de financeirização não foi nada trivial, e o próprio conceito de financeirização é controverso. Assim, o trabalho de definição das categorias de análise, feito fundamentalmente pelo Marcelo, representa um grande avanço", reconhece o orientador de do Carmo, explicando que um outro diferencial é o ponto de vista da Sociologia Econômica. "As explicações econômicas foram delegadas aos economistas, especialmente à corrente neoclássica dominante durante todo o século passado, com modelos positivistas. Isso pode ser perigoso", defende Sacomano. "A Sociologia Econômica é uma corrente heterodoxa, no que diz respeito, por exemplo, à reflexão sobre o papel do Estado, a necessidade de controlar as grandes elites, à abordagem da desigualdade. Para a Economia clássica, se o lucro das montadoras aumentou, está tudo conforme as leis econômicas. A Sociologia Econômica, de outro lado, evidencia a perda de empregos, a desigualdade de renda, bem como os impactos negativos sobre o ambiente", completa.

A agenda de pesquisa do grupo não se encerrou na indústria automobilística. No seu doutorado, concluído em 2020, Marcelo do Carmo analisou as 10 empresas com os maiores valores de mercado em todo o mundo - dentre as quais as cinco Big Techs, Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft -, e Sacomano agora está olhando para a economia brasileira. Mais informações podem ser solicitadas pelo e-mail marcelojosedocarmo77@gmail.com.