Notícia
Mariana Pezzo
- Publicado em
01-12-2025
17:35
Ciência dos oceanos ainda ignora o hemisfério Sul, alertam pesquisadores
O oceano é o ecossistema mais vasto da Terra. Apesar de sua maior parcela estar no hemisfério Sul, historicamente a pesquisa científica esteve concentrada no Norte. Com isso, há extensas regiões ainda pouco exploradas pelos cientistas, incluindo os chamados hotspots, áreas essenciais à compreensão de ciclos essenciais à vida no Planeta, como é o caso da região na foz do rio Amazonas. É o que alerta artigo publicado recentemente no periódico científico Ocean Microbiology, que tem como autor principal Hugo Sarmento, docente no Departamento de Hidrobiologia da UFSCar, em conjunto com 84 outros pesquisadores renomados da área, de 19 países.
A publicação registra serviços prestados pelo oceano - como seu papel central na regulação do clima (pela absorção de carbono e calor) e a geração de cerca de metade do oxigênio terrestre - e, de outro lado, as ameaças decorrentes da ação humana, como mudanças climáticas, pesca excessiva e poluição. "Nesse cenário, precisamos de pesquisa científica robusta informando a tomada de decisão e, para isso, são imprescindíveis tecnologias avançadas, equipamentos, compartilhamento de dados e, muito especialmente, pessoas especializadas, para que possamos explorar a complexidade desse oceano global, interconectado", situa Sarmento, que foi um dos coordenadores do AtlantECO, rede internacional que reuniu, com financiamento da União Europeia, cientistas de 13 países da própria Europa, Brasil e África do Sul.
Na publicação, a ênfase está no microbioma oceânico, formado por milhões de microrganismos, cuja atividade impacta o ciclo do carbono e outros processos biogeoquímicos globais. Seu estudo requer a coleta de amostras de água em diferentes pontos ao redor do Globo, o que geralmente é feito em grandes expedições em embarcações de pesquisa, e sequenciamento genético em plataformas que, junto com as viagens, elevam os custos da pesquisa oceânica.
O artigo traça um paralelo entre práticas passadas e as situações observadas hoje, em que pesquisadores de países mais desenvolvidos conduzem estudos em regiões remotas sem a participação de cientistas locais e, muito menos, das comunidades residentes. Essas práticas, conhecidas como "Ciência de paraquedas", apesar de muito criticadas, persistem, afirmam os autores. Em contraposição, o coletivo de pesquisadores propõe medidas para fortalecer o que denomina colaborações genuínas, baseadas em participação equitativa e compartilhamento de benefícios.
Indicadores dessa permanência de modelos promotores de desigualdade são a predominância, na literatura científica da área, de autores de fora das áreas estudadas. Dois exemplos apontados são as pesquisas sobre a Corrente de Benguela, na costa africana, e a pluma amazônica, regiões críticas para a pesquisa sobre ecossistemas marinhos com estudos liderados sobretudo por cientistas do hemisfério Norte e, muito frequentemente, sem participação de cientistas dos países estudados. Outras práticas pouco adequadas são a inclusão de cientistas locais apenas para cumprir exigências legais, como é o caso da Lei de Biodiversidade no Brasil, que exige a participação de pesquisadores brasileiros para acesso ao patrimônio natural do País. "Esta via de inclusão, sem fomento à real colaboração, é inclusive eticamente questionável, já que não representa parceria autêntica", explica o pesquisador da UFSCar.
Dentre os caminhos defendidos pelos autores do artigo, aparece a diplomacia científica, no sentido da necessidade de promover esforços e investimentos colaborativos, tanto no sentido de relações Norte-Sul mais equitativas, quanto de fortalecimento de redes Sul-Sul.
Além de registrar esta e várias outras sugestões para a cooperação científica, o artigo dialoga com discussões recentes sobre a governança global da biodiversidade marinha, especialmente no contexto do Acordo das Nações Unidas sobre a Biodiversidade Marinha em áreas além da Jurisdição Nacional (Acordo BBNJ, também conhecido como Tratado de Alto Mar, ou Tratado Global dos Oceanos). Aprovado em 2023, o Tratado entrará em vigor em 2026, com assinatura do Brasil e ratificação recente pelo Congresso Nacional. Ele estabelece regras para o acesso e o uso de recursos genéticos dos oceanos, incluindo informações genéticas extraídas de microrganismos marinhos registradas em bancos de dados públicos. "São dados de grande valor econômico e biotecnológico, servindo de base para o desenvolvimento de novos fármacos, enzimas e biomateriais. Por isso, estão no centro de debates sobre repartição justa e equitativa de benefícios", situa Sarmento.
O Tratado prevê que parte dos lucros gerados a partir do uso desses genes - muitos deles originários de águas no hemisfério Sul - seja destinada a um fundo internacional de apoio à pesquisa oceânica, que deve financiar projetos de capacitação e de infraestrutura científica em países em desenvolvimento, incluindo aqueles geograficamente próximos às regiões onde foram encontrados os recursos genéticos explorados. "A medida busca justamente corrigir as desigualdades históricas na produção de conhecimento sobre os oceanos, como alertamos no nosso artigo", relaciona o pesquisador da UFSCar.
A publicação reforça que, por suas características únicas, de ambiente vasto, dinâmico e dominado por formas de vida invisíveis a olho nu, compreender o oceano em toda a sua complexidade exige não apenas investimentos e tecnologia, mas também cooperação genuína entre países, instituições e cientistas. Ao não apenas apontar as assimetrias históricas, mas também sugerir mecanismos para superá-las - desde o fortalecimento das redes regionais até políticas globais como o Tratado BBNJ -, os autores defendem uma ciência oceânica mais inclusiva, representativa e comprometida com o futuro do Planeta. "Cabe também aos países do Sul global fazerem a sua parte: investir em financiamento próprio, coordenação e gestão científica, assumindo papel de liderança nessa nova era de pesquisa marinha. Dominar as tecnologias de observação, amostragem e sequenciamento genético não é apenas uma questão de avanço científico, mas também de soberania sobre seus recursos marinhos e de participação ativa nas decisões que moldarão o futuro dos oceanos e, assim, do Planeta", conclui Hugo Sarmento.
O artigo completo pode ser conferido neste link para a revista Ocean Microbiology.
A publicação registra serviços prestados pelo oceano - como seu papel central na regulação do clima (pela absorção de carbono e calor) e a geração de cerca de metade do oxigênio terrestre - e, de outro lado, as ameaças decorrentes da ação humana, como mudanças climáticas, pesca excessiva e poluição. "Nesse cenário, precisamos de pesquisa científica robusta informando a tomada de decisão e, para isso, são imprescindíveis tecnologias avançadas, equipamentos, compartilhamento de dados e, muito especialmente, pessoas especializadas, para que possamos explorar a complexidade desse oceano global, interconectado", situa Sarmento, que foi um dos coordenadores do AtlantECO, rede internacional que reuniu, com financiamento da União Europeia, cientistas de 13 países da própria Europa, Brasil e África do Sul.
Na publicação, a ênfase está no microbioma oceânico, formado por milhões de microrganismos, cuja atividade impacta o ciclo do carbono e outros processos biogeoquímicos globais. Seu estudo requer a coleta de amostras de água em diferentes pontos ao redor do Globo, o que geralmente é feito em grandes expedições em embarcações de pesquisa, e sequenciamento genético em plataformas que, junto com as viagens, elevam os custos da pesquisa oceânica.
O artigo traça um paralelo entre práticas passadas e as situações observadas hoje, em que pesquisadores de países mais desenvolvidos conduzem estudos em regiões remotas sem a participação de cientistas locais e, muito menos, das comunidades residentes. Essas práticas, conhecidas como "Ciência de paraquedas", apesar de muito criticadas, persistem, afirmam os autores. Em contraposição, o coletivo de pesquisadores propõe medidas para fortalecer o que denomina colaborações genuínas, baseadas em participação equitativa e compartilhamento de benefícios.
Indicadores dessa permanência de modelos promotores de desigualdade são a predominância, na literatura científica da área, de autores de fora das áreas estudadas. Dois exemplos apontados são as pesquisas sobre a Corrente de Benguela, na costa africana, e a pluma amazônica, regiões críticas para a pesquisa sobre ecossistemas marinhos com estudos liderados sobretudo por cientistas do hemisfério Norte e, muito frequentemente, sem participação de cientistas dos países estudados. Outras práticas pouco adequadas são a inclusão de cientistas locais apenas para cumprir exigências legais, como é o caso da Lei de Biodiversidade no Brasil, que exige a participação de pesquisadores brasileiros para acesso ao patrimônio natural do País. "Esta via de inclusão, sem fomento à real colaboração, é inclusive eticamente questionável, já que não representa parceria autêntica", explica o pesquisador da UFSCar.
Dentre os caminhos defendidos pelos autores do artigo, aparece a diplomacia científica, no sentido da necessidade de promover esforços e investimentos colaborativos, tanto no sentido de relações Norte-Sul mais equitativas, quanto de fortalecimento de redes Sul-Sul.
Além de registrar esta e várias outras sugestões para a cooperação científica, o artigo dialoga com discussões recentes sobre a governança global da biodiversidade marinha, especialmente no contexto do Acordo das Nações Unidas sobre a Biodiversidade Marinha em áreas além da Jurisdição Nacional (Acordo BBNJ, também conhecido como Tratado de Alto Mar, ou Tratado Global dos Oceanos). Aprovado em 2023, o Tratado entrará em vigor em 2026, com assinatura do Brasil e ratificação recente pelo Congresso Nacional. Ele estabelece regras para o acesso e o uso de recursos genéticos dos oceanos, incluindo informações genéticas extraídas de microrganismos marinhos registradas em bancos de dados públicos. "São dados de grande valor econômico e biotecnológico, servindo de base para o desenvolvimento de novos fármacos, enzimas e biomateriais. Por isso, estão no centro de debates sobre repartição justa e equitativa de benefícios", situa Sarmento.
O Tratado prevê que parte dos lucros gerados a partir do uso desses genes - muitos deles originários de águas no hemisfério Sul - seja destinada a um fundo internacional de apoio à pesquisa oceânica, que deve financiar projetos de capacitação e de infraestrutura científica em países em desenvolvimento, incluindo aqueles geograficamente próximos às regiões onde foram encontrados os recursos genéticos explorados. "A medida busca justamente corrigir as desigualdades históricas na produção de conhecimento sobre os oceanos, como alertamos no nosso artigo", relaciona o pesquisador da UFSCar.
A publicação reforça que, por suas características únicas, de ambiente vasto, dinâmico e dominado por formas de vida invisíveis a olho nu, compreender o oceano em toda a sua complexidade exige não apenas investimentos e tecnologia, mas também cooperação genuína entre países, instituições e cientistas. Ao não apenas apontar as assimetrias históricas, mas também sugerir mecanismos para superá-las - desde o fortalecimento das redes regionais até políticas globais como o Tratado BBNJ -, os autores defendem uma ciência oceânica mais inclusiva, representativa e comprometida com o futuro do Planeta. "Cabe também aos países do Sul global fazerem a sua parte: investir em financiamento próprio, coordenação e gestão científica, assumindo papel de liderança nessa nova era de pesquisa marinha. Dominar as tecnologias de observação, amostragem e sequenciamento genético não é apenas uma questão de avanço científico, mas também de soberania sobre seus recursos marinhos e de participação ativa nas decisões que moldarão o futuro dos oceanos e, assim, do Planeta", conclui Hugo Sarmento.
O artigo completo pode ser conferido neste link para a revista Ocean Microbiology.