Notícia

Tiago Marconi - Publicado em 15-12-2025 16:43
Grandes empresas de tecnologia passam por processo de financeirização
Sede do Google, na Califórnia, Estados Unidos (Foto: The Pancake of Heaven! – CC BY-SA 4.0)
Sede do Google, na Califórnia, Estados Unidos (Foto: The Pancake of Heaven! – CC BY-SA 4.0)
Concentração de ações nas mãos de poucos acionistas institucionais, um número grande de fusões e aquisições, o pagamento de dividendos, a recompra de ações, grandes remunerações aos executivos e achatamento de salários dos trabalhadores de cargos mais baixos indicam que grandes empresas de tecnologia vivem um processo de financeirização. É o que defende artigo assinado por pesquisadores da UFSCar, apresentado em 2025 em congresso nos Estados Unidos. Não apenas apresentado: "Financialisation in Big Tech Companies: Shareholders, Capital and Labour" ganhou o Prêmio Warren Samuels no encontro anual da American Economic Association (AEA, Associação Econômica Americana), que aconteceu em São Francisco, na Califórnia.

O prêmio - que homenageia o economista Warren Samuels - se destina a artigos que unam alta qualidade, importância para a Economia Social e apelo amplo a outras disciplinas. Sua entrega acontece em reunião da ASSA (Associações de Ciências Sociais Aliadas, na sigla em Inglês) organizada pela AEA junto com outras dezenas de organizações, entre as quais a Associação para Economia Social (ASE, na sigla em Inglês), à qual Samuels era ligado.

O conceito de financeirização, explica o artigo, é uma tentativa de descrever um fenômeno que vem acontecendo há quase 40 anos, mas ainda cheio de lacunas em sua compreensão: justamente o aumento da importância das finanças na sociedade. "Antes te emprestavam dinheiro, mas não participavam da vida da sua empresa. Hoje, não. Os capitalistas, os investidores, os bancos, mordem um pedaço da sua empresa e acabam sendo controladores e ditando as estratégias", explica Marcelo José do Carmo, professor e pesquisador no Departamento de Engenharia de Produção (DEP) da UFSCar e primeiro autor do artigo, escrito com Mário Sacomano Neto e Julio Cesar Donadone, também docente no DEP. O pesquisador aponta que essa transformação não se restringe à vida empresarial: "as pessoas estão cada vez mais endividadas, o banco domina muito a sua vida. Não procuramos moralizar, 'a culpa é do banco', mas é um fato que cada vez mais as pessoas se endividam, os estados também se endividam".

Antes das empresas de tecnologia, Carmo e seus colegas estudaram o processo de financeirização de empresas automotivas, que lucram mais com leasing e outras ferramentas financeiras do que com a venda de veículos. A pesquisa resultou em livro publicado pela editora Routledge em 2021 e, em 2023, pela mesma editora, os pesquisadores da UFSCar fizeram uma segunda publicação em livro sobre financeirização de empresas. Em 2024, com colegas da Índia, organizaram outro livro sobre esse fenômeno na indústria automotiva.

Na indústria de tecnologia, eles se debruçaram sobre as cinco maiores empresas da área - Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft - e constataram a presença de elementos suficientes para indicar a existência de um processo de financeirização nelas, ainda que nem todos os elementos estejam presentes em todas as empresas.

A concentração de ações nas mãos de grandes acionistas corporativos foi observada nas cinco; inclusive, os dois principais acionistas de todas elas são os mesmos fundos: Vanguard e Blackrock, nessa ordem. Em 2020, último ano analisado na pesquisa, os cinco maiores acionistas dessas empresas detinham entre 32% e 44% de suas ações, enquanto representavam 0,2% do número total de acionistas. Os efeitos da concentração são complexos. Carmo explica que os dois fundos mencionados mais o State Street, juntos, compõem os Big Three de Wall Street e detêm quase 90% das empresas listadas no S&P 500, índice da agência Standard & Poor's que reúne 500 ativos. "Os três maiores estão chegando a 30 trilhões de Dólares de ativos sob gestão, é como se fosse uma economia americana, só os três", conta Carmo, comparando o patrimônio dos fundos com o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, que, em 2023, foi de US$ 27,36 trilhões. "Então, o poder deles é muito grande, tanto de investimento quanto de desinvestimento." Como exemplo, o pesquisador aponta para fundos, especialmente um da Califórnia, que abandonaram políticas de diversidade, equidade e inclusão (reunidas na sigla DEI) após resultados financeiros ruins.

O segundo elemento de financeirização apresentado no artigo foram aquisições e fusões. Os autores ponderam que a prática é antiga no capitalismo industrial e não é um fenômeno de financeirização em si, mas que a aquisição de outras empresas tem importância crescente para o aumento do pagamento de dividendos, para a recompra de ações e o domínio do mercado. De acordo com o artigo, até 2020, as cinco empresas estudadas adquiriram 780 outras empresas, com Alphabet (245) e Microsoft (235) juntas respondendo pela maior parte dessas aquisições.

O pagamento de dividendos e a recompra de ações foram o terceiro elemento considerado como parte da financeirização das big techs. Os autores consideram este um dos principais indicadores do processo de financeirização por revelar o quanto a produção se torna apenas um meio para gerar riqueza e distribuir aos acionistas. A recompra de ações pode se dar junto aos acionistas, funcionando como uma espécie de dividendo extra, ou junto à própria empresa, que, dessa forma, diminui o número de ações no mercado, o que faz seus preços aumentarem. Nessa área, o destaque é a Apple, que pagou dividendos crescentes e realizou mais recompras de ações entre 2012 e 2020. A Amazon, por outro lado, é a exceção por não usar nenhum dos dois mecanismos.

O quarto indicador investigado na pesquisa foi a remuneração a executivos, na casa de milhões de Dólares por ano, incluindo salário, bônus e outras formas. Chama a atenção a remuneração de Sundar Pichai, CEO da Alphabet, em 2016: praticamente 200 milhões de Dólares. Os autores apontam que não há necessariamente relação entre a remuneração aos executivos e o desempenho da empresa e que essa concentração de renda tem mais a ver com o poder interno que esses profissionais adquirem. O artigo aponta também para o fato de que a remuneração em opções de ações, prática predominante atualmente, obscurece a divisão entre controle e propriedade, contrariando o princípio de que seria vantajoso para as empresas que os responsáveis por tomar decisões não tivessem o próprio dinheiro em jogo.

O último elemento analisado é a remuneração aos empregados. Uma das características do processo de financeirização, diz o artigo, é que, enquanto o eixo financeiro da empresa (acionistas e executivos) se beneficia, o polo produtivo (trabalhadores, empregos, fábricas e outros ativos físicos) é ameaçado. Nas empresas analisadas, os salários iniciais são menores do que a média nos Estados Unidos e, mesmo havendo um incremento posterior, os autores defendem que não são compatíveis com o tamanho econômico dessas empresas. O artigo traz também uma tabela comparando o salário inicial para determinadas funções nas empresas com a remuneração dos CEOs, e a diferença, em alguns casos, pode chegar a dezenas de milhares de vezes.

Para Carmo, um dos principais efeitos da financeirização para a sociedade como um todo é justamente o aumento da desigualdade. "Existe literatura que fala que, em 1965, a diferença do executivo para a média dos trabalhadores era de 30 vezes; na década de 2000, é de 300 vezes. Hoje já há lugar em que, dependendo do CEO, pode chegar a 3 mil, 4 mil, uma desigualdade econômica sendo produzida de propósito."

O próximo assunto que o professor quer pesquisar é a relação entre Estado e financeirização. "Fui para o Mato Grosso do Sul, e agora só tem Starlink", comentou na entrevista para elaboração desta reportagem, em referência à empresa de acesso à Internet por satélite de Elon Musk. "Então, o poder dessas pessoas ultrapassa só as relações acionárias, é um poder político, cultural, e também comportamental." Embora a avaliação ainda esteja no campo da opinião, uma vez que a pesquisa sequer começou, o papel de Musk na política americana recente dá indícios de uma hipótese sólida.